A∴G∴D∴G∴A∴D∴U∴
Todos
os anos, em 21 de abril, é rememorado o dia do enforcamento de
Tiradentes, tido como herói e mártir da Inconfidência Mineira, um
dos principais movimentos de contestação do poder que a coroa
portuguesa exercia sobre o Brasil Colônia (FERNANDES, 2016) e um dos
ensaios do processo de Independência do Brasil.
Tiradentes
era o apelido de Joaquim José da Silva Xavier, um alferes, cargo
militar da época colonial, equivalente ao Tenente da atualidade, e
que também exerceu a profissão de dentista. Participou ativamente
da Inconfidência Mineira, movimento que se articulou entre os anos
de 1788 e 1789 e foi permeado por ideias provindas do Iluminismo que
se alastrou pela Europa, na segunda metade do século XVIII.
Conforme
a narrativa do Prof. Cláudio Fernandes:
“Os inconfidentes de Minas
Gerais geralmente integravam, com exceção de poucos, a elite
cultural e social daquela região (como o poeta Tomás Antônio
Gonzaga) ou então ocupavam postos militares ou exerciam profissões
liberais, como o próprio Tiradentes. O que dava unidade ao grupo
eram ideias como a de liberdade e igualdade (ideias essas que também
fomentaram a Revolução Francesa, em 1789), além do anseio pela
emancipação e independência com relação à Coroa Portuguesa, à
época governada pela rainha D. Maria, “A louca”.
Os planos de insurgência
contra o governo local em Minas, representado pelo Visconde de
Barbacena, foram articulados em 1788 e tiveram como estopim a
política de cobrança de impostos sobre a produção aurífera e
sobre os rendimentos que ganhava cada pessoa que compunha a população
de Minas Gerais. Esse último imposto era conhecido sob o nome de
“derrama”. Apesar de terem uma organização bem elaborada, os
inconfidentes foram delatados por Silvério dos Reis, um devedor de
tributos que, com a denúncia, acreditava poder sanar suas dívidas
com a coroa.
Todos os inconfidentes foram
presos. Tiradentes foi apanhado no Rio de Janeiro. O processo
estabelecido contra eles e os subsequentes julgamentos e sentenças
só terminaram em 1792, no dia 18 de abril. Os principais líderes
receberam a pena do banimento, isto é, foram expulsos do país.
Tiradentes, ao contrário, foi enforcado no dia 21 de abril ao som de
discursos que louvavam a rainha de Portugal. Seu corpo foi
esquartejado e sua cabeça exibida na praça principal da cidade de
Ouro Preto.
Evidentemente, o dia da morte
de Tiradentes por muito tempo foi compreendido como o dia em que um
rebelde foi morto, como típico exemplo de retaliação absolutista.
Entretanto, após a Independência do Brasil e, principalmente, após
a Proclamação da República (época em que o Brasil, já
desvinculado de Portugal, procurava construir sua identidade
nacional), a imagem de Tiradentes começou a ser recuperada e louvada
como um dos heróis da nação ou como um dos que primeiramente
lutaram (até a morte) pela liberdade.
Um exemplo dessa imagem foi a
instalação, em 1867, do primeiro monumento a Tiradentes na cidade
de Ouro Preto. Outro exemplo, o mais notório, foi a confecção, por
parte do pintor Pedro Américo, do quadro “Tiradentes Esquartejado”
em 1893, época em que a República recém-instituída procurava os
mártires e os patronos da “Nação Brasileira”. O Tiradentes de
Pedro Américo traduz a imagem idealizada do martírio, que se
aproxima do martírio de Cristo.
Essa visão republicana de
Tiradentes permaneceu no imaginário popular dos brasileiros, e de
certo modo ainda permanece. Em 1965, durante a primeira fase do
regime militar no Brasil, o marechal Castelo Branco, então
presidente da República, contribuiu para o reforço dessa imagem de
Tiradentes sancionando a Lei Nº 4. 897, de 9 de dezembro, que
instituía oficialmente o dia 21 de abril como feriado nacional e
Tiradentes como Patrono da Nação Brasileira. ”
É
preciso destacar, antes de irmos mais adiante, a responsabilidade do
historiador na transcrição das memórias. Segundo Keith Jenkins1,
“baseado nos documentos ou outras fontes históricas, o pesquisador
transforma aquele objeto em uma narrativa - a história depende dos
olhos e da voz de outrem: vemos por intermédio de um intérprete que
se interpõe entre os acontecimentos passados e a leitura que dele
fazemos”.
E a
verdade pode se apresentar de diversas formas, através dos inúmeros
enredos de seus narradores, também influenciados pelo momento
histórico em que foi escrito e a ideologia vigente. Vejamos algumas
dessas vertentes da “verdade”.
Segundo
Joaquim Norberto1,
Tiradentes era:
“[...] feio, ignorante,
falastrão, pobre, inconveniente, que foi admitido nos meios
inconfidentes e ainda, por irresponsabilidade, colocou tudo a
perder”.
Segundo
seus críticos, essa imagem de Tiradentes provém do fato de Norberto
ser monarquista, amigo do Imperador D. Pedro II e almejar algum
título nobiliárquico.
Entretanto,
segundo a obra do historiador Silva Jardim, em 1890, Tiradentes era:
“Um homem alto, magro, porém
musculoso, de largas espáduas, cabelos a meio encanecidos a
caírem-lhe anelados, fisionomia impressionadora, notável o olhar,
cheio de estranha vida [...]. Era eloquente em suas palavras e
gestos, e muitas vezes ungia-lhe o entusiasmo. O trato insinuante e
lhano, de modo a cercar-se de relações, expansivo e rude a ponto de
afugentar o tímido e penetrar os másculos. Não era belo”.
Percebemos
duas imagens desenhadas com motivos políticos. Uma desqualificando e
outra enaltecendo o personagem.
Varnhagem,
considerado o “pai” da história do Brasil, proveniente de
família monarquista, descreveu Tiradentes como “bastante alto e
muito espadaúdo, de figura antipática, feio e espantado e incapaz
de ter recebido a tarefa de ser o propagandista da conjuração”.
O
então Governador de Minas Gerais, Visconde de Barbacena, ao saber
sobre os planos de uma revolução do inconfidente, disse: “só se
for uma revolução de meretrizes. Deem nesse maroto com um chicote.
Ele é um bêbado”.
Outra
narrativa ainda pode ser encontrada nos “Autos da Devassa”:
“Era audacioso, conseguiu
melhor contato com seu comandante. E, um dia, firme e corajosamente,
abordou o tenente-coronel Francisco de Paula Freire de Andrade sobre
a Conjuração Mineira. A atitude causou forte estranheza ao chefe
das tropas, pois não supunha aquele subordinado capaz de tamanha
afoiteza, conforme declarou em seu depoimento à Devassa (MURY,
1993:65) ”.
E
usando as palavras de Carlos Ballarotti:
Explica-se Tiradentes sob
várias faces: o mártir símbolo republicano, o sacrificado como
Jesus Cristo, o “bode expiatório”, o líder da Conjuração
Mineira, o louco e o falastrão, o revolucionário inspirado nos
ideários americano e francês, o antipático e ignorante, o
expansivo e letrado e quantas mais imagens aparecerem sobre o herói.
Seria importante hoje saber
qual dessas imagens é a verdadeira?
A questão não é saber se
Jesus foi crucificado, depois ressuscitado, mas de se compreender
como é possível tantos homens ao nosso redor crerem na crucificação
e na ressurreição.
Da mesma forma, não é
importante saber se Tiradentes era líder ou “bode expiatório”
da Inconfidência, mas verificar como é possível que tantos homens
acreditem que ele é um herói”.
Conclusão
Alguns
pesquisadores modernos, ditos revisionistas, muitos dos quais
defensores da volta da Monarquia, buscam desfazer o mito de
Tiradentes. É certo que sua história se apresenta controvertida e
cheia de lacunas. Mas o que vale mais, a mensagem ou o mensageiro?
Precisamos
perceber o ideal por trás do mito. O ideal de liberdade e de
resistência contra o absolutismo, a tirania, o modelo de
colonização, escravidão e exploração.
Foi
assim com a lenda de Buda contra o Bramanismo; Jesus contra o Império
Romano; Maomé, o unificador e redentor das tribos árabes, contra as
injustiças sociais e religiosas de sua época; Gandhi contra o
domínio Britânico.
O
mito e o símbolo cumprem a função de complementar a linguagem e
fazer chegar o significado da mensagem até o inconsciente do homem.
“Por existirem inúmeras
coisas fora do alcance da compreensão humana é que frequentemente
utilizamos termos simbólicos como representação de conceitos que
não podemos definir ou compreender integralmente” - Jung, 1961.
O
herói é um símbolo, que possui fórmula definida, segundo Jung:
como o ser de nascimento humilde, mas milagroso; provas de sua força
sobre-humana precoce; sua ascensão rápida ao poder e à
notoriedade; sua luta triunfante contra as forças do mal; sua
falibilidade ante a tentação do orgulho e; seu declínio, por
motivo de traição ou por um ato de sacrifício “heroico”, no
qual sempre morre.
Assim
foram as narrativas sobre Hércules, Ulisses, Aquiles e Heitor.
Alexandre Magno, César, Osíris, Hórus. Ainda o Gilgamesh
babilônico, o Rei Arthur ou o Sansão traído por Dalila. E tantos
outros heróis de todas as tradições.
O
indivíduo precisa desse esquema como fórmula para encontrar e
afirmar sua personalidade, tanto quanto a sociedade como um todo
necessita estabelecer uma identidade coletiva.
Esses personagens divinos são
representações simbólicas da psique total, entidade maior e mais
ampla que supre o ego da força que lhe falta. [...] é atribuição
essencial do mito heroico desenvolver no individuo a consciência do
ego – o conhecimento de suas próprias forças e fraquezas – de
maneira a deixá-lo preparado para as difíceis tarefas que a vida
lhe há de impor.
Uma vez passado o teste
inicial e entrando o indivíduo na fase da maturidade da sua vida, o
mito do herói perde a relevância. A morte simbólica do herói
assinala a conquista daquela maturidade (JUNG, 1961)3.
Mesmo
que o indivíduo amadureça a tal ponto de descartar as fantasias,
crenças, lendas e mitos, a sociedade em geral precisa cultivar ditas
lendas como suporte pedagógico para seu desenvolvimento psicológico
e político-social.
Acredito
que um dos problemas do Brasil, assim como da maioria dos seus
vizinhos latino-americanos, é a diminuta quantidade de heróis que
os inspire e lhes dê esse suporte subliminar ou subconsciente.
Precisamos
de mais figuras como a de Tiradentes, personificando os valores
básicos para a formação de uma sociedade mais justa. Seu mito é
um símbolo para o profano e um grande ensinamento para os iniciados,
mantendo vivo em nossa memória que desde aquela época um grupo de
homens se reúne para combater o despotismo, os preconceitos e os
erros, para glorificar a Verdade e a Justiça, assim como para
promover o bem-estar da Pátria e da Humanidade, levantando Templos à
Virtude e cavando masmorras ao vício.
E
são esses valores que cultuamos e rememoramos no dia 21 de abril∴
Or∴
de Curitiba, 20 de abril de 2016.
Daniel de Queiroz Barbosa∴
M∴
M∴
Referências:
BALLAROTTI, C. R. A construção do mito de Tiradentes: de
mártir republicano a herói cívico na atualidade.
Dissertação (Mestrado em História Social). Universidade Estadual
de Londrina. Londrina. 2009.
BLOG Monarquia Já. Disponível em <http://imperiobrasileiro-rs.blogspot.com/>.
Acesso em 03/04/2016.
Brasil. LEI Nº 4.897, DE 9 DE DEZEMBRO DE 1965. Sítio da Câmara
dos Deputados, em
<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1960-1969/lei-4897-9-dezembro-1965-368995-publicacaooriginal-1-pl.html>. Acesso em 03/04/2016.
FERNANDES, Cláudio. "21 de Abril - Dia de Tiradentes".
Brasil Escola. Disponível em <https://brasilescola.uol.com.br/datas-comemorativas/tiradentes.htm>.
Acesso em 03 de abril de 2016.
GOMES, Laurentino. BLOG Laurentino Gomes. Disponível em <http://www.laurentinogomes.com.br/>.
Acessado em 11/04/2016.
JUNG, C.G. O homem e seus símbolos. 2ª edição especial.
Nova Fronteira, 2008.
2 Joaquim Norberto de Souza Silva, autor de História da Conjuração
Mineira, publicada em 1873.
3 O homem e seus símbolos, cap. 1 – Chegando ao inconsciente.