domingo, 24 de fevereiro de 2013

Sobre a Liberdade


E um orador disse, Fala-nos da Liberdade.
E ele respondeu:

Às portas da cidade e junto à lareira já vos vi prostrados a venerarem a vossa própria liberdade.
Tal como os escravos se curvam perante um tirano e o louvam enquanto ele os açoita.
Ah, no bosque do templo e à sombra da cidadela já vi os mais livres de entre vós usarem a liberdade como grilhetas.
E o meu coração sangrou por dentro; pois só se pode ser livre quando o desejo de encontrar a liberdade se tornar a vossa torta e quando deixardes de falar de liberdade como objectivo e plenitude.
Sereis verdadeiramente livres não quando os vossos dias não tiverem uma preocupação nem as vossas noites necessidades ou mágoas.
Mas quando estas coisas rodearem a vossa vida e vós vos ergais acima delas, despidos e libertos.
E como vos podereis erguer para lá dos dias e das noites a menos que quebreis as cadeias que, na aurora do vosso conhecimento, apertastes à volta do entardecer?
Na verdade, aquilo a que chamais liberdade é a mais forte dessas cadeias, embora os seus aros brilhem à luz do sol e vos ofusquem a vista.
E o que é isso senão fragmentos do vosso próprio ser de que vos libertareis para vos tornardes livres?
Se se trata apenas de uma lei injusta que ireis abolir, essa lei foi escrita com a vossa mão apoiada na vossa fronte.
Não podereis apagá-la queimando os livros das leis, ou lavando as frontes dos vossos juizes, embora despejeis o mar sobre eles.
E se é um déspota que ireis destronar, certificai-vos primeiro de que o trono erigido dentro de vós também é destruído.
Pois como pode um tirano mandar sobre os livres e os orgulhosos, senão exercendo a tirania sobre a liberdade deles e sufocando-lhes o orgulho?
E se se trata de uma preocupação que quereis fazer desaparecer, essa preocupação foi escolhida por vós e não imposta.
E se é um receio que quereis afastar, a origem desse receio reside no vosso coração e não na mão daquele que receais.
Na verdade, todas as coisas se movem dentro do vosso próprio ser em constante meia união, o desejado e o receado, o repugnante e o atraente, o perseguido e o de quem quereis escapar.
Estas coisas movem-se dentro de vós como luzes e sombras, aos pares, agarradas.
E quando a sombra se desvanece e deixa de ser, a luz que resta torna-se sombra para uma nova luz.
Por isso, a vossa liberdade quando perde as cadeias torna-se ela própria uma cadeia de maior liberdade.

Gibran Khalil Gibran

Sobre o Crime e o Castigo


Então, um dos juízes da cidade avançou e disse, Fala-nos do Crime e do Castigo.
E ele respondeu, dizendo:

É quando o vosso espírito vagueia pelo vento que vós, solitários e indefesos, fazeis mal aos outros e também a vós mesmos.
E pelo mal que fazeis devereis bater à porta dos abençoados e esperar.
O vosso eu interior é como o oceano; Permanece para sempre imaculado.
E, tal como o etéreo, só ergue os seres alados.
O vosso eu interior é como o sol; Não conhece os esconderijos da toupeira nem procura as tocas da serpente.
Mas o vosso eu interior não habita sozinho dentro de vós.
Muito em vós ainda é humano, e muito não o é.
Mas um pigmeu disforme que caminha sonâmbulo no nevoeiro à procura do seu próprio despertar.
E é do homem em vós que agora irei falar.
Pois é ele e não o vosso eu interior, nem o pigmeu no nevoeiro que conhece o crime e o castigo do crime.
Muitas vezes vos ouvi falar daquele que comete um crime como se não fosse um de vós mas um intruso no vosso mundo.
Mas digo-vos que, tal como os santos e os justos não se podem erguer mais alto do que o mais alto que existe em cada um de vós, também os maus e os fracos não podem cair mais baixo do que o mais baixo que existe em vós.
E tal como uma simples folha só amarelece em conjunto com toda a árvore, Também aquele que comete um crime não o pode fazer sem a anuência secreta de todos vós.
Como numa procissão, caminhais juntos em direcção ao vosso eu interior.
Vós sois o caminho e os caminhante e quando um de vós cai, cai por aqueles que vêm atrás, para os avisar da pedra que encontraram no caminho.
E cai por aqueles que vão à sua frente, que, embora mais rápidos e seguros, não estão livres de tropeçarem na mesma pedra.
E notai que, embora a palavra vos pese no coração: O assassinado não está isento de responsabilidade pelo seu próprio assassínio, e o roubado não está isento de culpas por o ter sido.
O justo não está inocente dos feitos do malvado, e o que tem as mãos limpas não está limpo dos actos do culpado.
Sim, o culpado é por vezes vítima do ofendido.
E ainda mais vezes é o portador do fardo dos inocentes e rectos.
Não podeis separar o justo do injusto e o bom do mau;
Pois eles andam juntos ante a luz do sol, tal como juntos são tecidos os fios brancos e negros
E quando o fio negro quebra, o tecelão examina todo o tecido e também todo o tear.
Se algum de vós trouxer a julgamento a mulher infiel, que também pese o coração do marido e meça a sua alma.
E que aquele que quiser flagelar o ofensor olhe para o espírito do ofendido.
E se algum dá vós punir em nome do que é justo e cortar com o machado a árvore do mal, deixe então que se vejam as raízes;
E encontrará as raízes do bom e do mau, do que dá frutos e do que não dá, entrelaçadas no coração silencioso da terra.
E vós, juizes, que quereis ser justos, que condenação ireis dar àquele que, embora honesto de corpo, é um ladrão de espírito?
Que castigo ireis dar àquele que flagela a carne e também flagela o espírito?
Como procedereis com aquele que nos seus actos é falso e opressor, mas que, no entanto, é também enganado e oprimido?
E como ireis punir aqueles cujos remorsos são maiores do que os crimes que cometeram?
Não será o remorso a justiça que é administrada pela própria lei que quereis servir?
No entanto, não podereis impor o remorso ao inocente, nem arrancá-lo do coração do culpado.
Subitamente, à noite, ele convocará os homens para que olhem para si próprios.
E vós, que deveis entender a justiça, como o podereis fazer a menos que olheis para os factos à plena luz?
Só assim sabereis que o erecto e o caído são um único homem no crepúsculo entre a noite da sua pequenez e o dia da sua espiritualidade, e que a pedra mãe do templo não é mais alta que a mais funda pedra dos seus alicerces.


Gibran Khalil Gibran. O Profeta.