sábado, 17 de março de 2012

O filho da viúva

Esse relato dúplice de sua vida corresponde ao relato também dúplice que temos da vida de Cristo. Há em grande parte uma história pessoal a par de uma história secundária, de caráter mitológico, sobreposta àquela. 
De acordo com o mito da vida de Cristo, foi ele filho de uma virgem, e ele não teve nenhum pai legítimo a se postar entre ele e o pai arquetípico. 
O mito de Mani nos diz que ele foi o “filho da viúva”, e que não teve nenhum pai legítimo a se postar entre ele e a sabedoria secreta que herdou dos pais ancestrais. 
Há um padrão semelhante aqui, ainda que os detalhes não sejam exatamente os mesmos. Esse estado de coisas – a falta de um pai legítimo aliada a uma disponibilidade particular a uma ligação com o pai arquetípico – é um modelo reconhecível na psicologia de certos homens. Quando há a falta do pai no começo dos anos de formação da criança, abre-se um buraco no nível pessoal da psique. Há uma acessibilidade direta ou abertura entre o ego e as camadas mais profundas da psique arquetípica, sobretudo o arquétipo do pai, de vez que este é o que não passou pela encarnação pessoal comum através de um relacionamento com um pai humano. 
Não há nenhum “amortecedor” entre o ego e o arquétipo. Em muitas famílias em que falta um dos pais, a ausência do pai é desastrosa; o surgimento de um profeta religioso não é a consequência comum. A falta do pai com mais probabilidade gera um indivíduo em quem os aspectos primitivos e atávicos do arquétipo masculino vêm à luz; mas quando o ego é o bastante para a tarefa, a sabedoria arquetípica pode irromper, e há um potencial para que se crie um profeta. 
Cristo, nessa situação, tem a experiência de si mesmo como o filho de seu pai celestial; 
Mani se reconhece a si mesmo como o herdeiro de Scythianos[2], o pai ancestral. 
Embora a figura pessoal falte, a sabedoria arquetípica flui diretamente, por assim dizer.

A Psique na Antiguidade. F. Edinger, Edward
Perspectiva Junguiana.


[1] A Psique na Antiguidade começou na forma de duas séries de palestras dadas no Instituto C. G. Jung em Los Angeles no inverno de 1993 e 1994.
[2] Os citas conhecidos por Heródoto se chamavam de Skolotoi. A palavra grega Skythes provavelmente reflete uma versão antiga do mesmo nome, Skuda - (onde Heródoto transcreveu o som [ð], que não lhe era familiar, pelo lâmbda, -toi representa a terminação plural do iraniano do nordeste, -ta). O termo, que originalmente significava "atirador", "arqueiro", veio por sua vez da raiz proto-indo-europeia *skeud- "atirar", "arremessar". (paralelo ao inglês shoot, e ao alemão Schütze). O nome usado pelos sogdianos para se referir a si próprios, Sw?d, pode representar uma palavra relacionada (*Skuda > *Suuda com uma vogal anaptítica). A palavra também aparece no assírio, na forma Aškuzai ou Iškuzai ("cita"). Pode ter sido a fonte para o termo bíblico Ashkenaz (transl. škuz, que foi grafada erroneamente como ’šknz), que originou o termo judaico posterior para se referir às áreas germânicas da Europa Central, e foi usado como forma de auto-descrição pelos judeus asquenazitas que ali viviam entre os Ashkenazim ("alemães"), que eram chamados então de teutônicos ou Wendels. Os antigos persas usavam outro nome para os citas, sacas (saka), que talvez seja um derivado da raiz verbal sak- "ir", "vagar", ou seja, "andarilho", "nômade". Os chineses conheciam os sacas citas asiáticos) como Sai (caracter chinês: ?; sinítico antigo: *sak). A província iraniana do Sistão (Sistan) recebeu seu nome do tradicional Sacastão (Sakistan, a terra dos saka).  


Nenhum comentário:

Postar um comentário